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2 de outubro de 2015

Assista antes de ler

'Booktubers' comentam livros do vestibular em vídeos na internet e despertam o interesse dos jovens para títulos além dos mais vendidos.

"Li 'Vidas Secas' só por ler, meio sem vontade. Anos depois, quando assisti a Tati, realmente fiz por interesse", diz o arquiteto Rafael Ribeiro, 22. Ele se refere a Tatiana Feltrin, 33, dona de um canal no YouTube que comenta uma das exigências do vestibular: os livros.

Os chamados "booktubers'' formam um grupo de fãs da literatura que se reúne pela internet. Eles leem pelo menos um livro por semana e comentam on-line. Entre as obras, estão aquelas de leitura obrigatória nas provas das universidades públicas.

"Estou com um desafio de falar sobre cem obras da literatura brasileira. Já levantei os nomes da Fuvest. A cada 15 dias vou comentar sobre uma delas", diz Feltrin, dona do canal criado em 2007 que leva o seu próprio nome.

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Tatiana Feltrin, 33, pretende fazer vídeos sobre cem obras da literatura brasileira.

Os vídeos são feitos, quase sempre, na casa de cada um e sem muita produção.

Eles não se sustentam com esses canais. O único pagamento vem do "Google AdSense", ferramenta que conecta anunciantes com canais de produtores de conteúdo na internet.

Tatiana Feltrin, a mais antiga das "booktubers", recebe perto de U$ 300 (o equivalente a R$ 900) por mês, marca que conseguiu alcançar há apenas um ano.

Bom Humor

A característica comum à maioria dos "booktubers" é a maneira descontraída com a qual comentam obras densas da literatura brasileira, como "Memórias Póstumas de Brás Cubas", de Machado de Assis, exigido para o vestibular da USP deste ano.

O desafio dos cem livros da literatura brasileira, iniciado por Feltrin, teve 15 mil visualizações. Na apresentação, um dos temas foi "O Cortiço", de Aluísio Azevedo, também na lista da Fuvest.

Nada perto do recorde da professora, 200 mil cliques no comentário sobre um best-seller que deve passar longe dos vestibulares: "Harry Potter", de J.K. Rowling.

O público que visita as páginas é, em geral, composto por jovens de 14 a 20 anos, que ainda aproveitam a seção de comentários do YouTube para pedir conselhos sobre a escolha do curso.

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Mariana Gastal mostra um dos vídeos gravados na sua casa em Brasília.

Mariana Gastal, 22, "booktuber" e formada em publicidade e design, fala da profissão em um dos seus vídeos. "Passei a receber algumas mensagens de jovens que queriam saber sobre os conteúdos que eu estava estudando e como tinha escolhido qual carreira queria seguir", conta à Folha.

Os vídeos, porém, não substituem a leitura completa dos livros, argumenta o professor de literatura Nelson Dutra, 60.

"As provas têm exigências muito específicas que precisam ser estudadas com afinco. A análise aprofundada e crítica das obras se torna fundamental para entender as características de cada autor brasileiro e, claro, passar no vestibular", diz.

Os "booktubers" entrevistados afirmam que não fazem críticas literárias ou resenhas. Eles classificam de comentários pessoais e dizem que a intenção é atrair os jovens para a leitura.

"A verdade é que o jeito como esses livros são geralmente apresentados para os adolescentes durante a escola não gera qualquer tipo de identificação. Dessa maneira, passa a ser algo interessante", diz Rafael Ribeiro.

Inspirado pela hoje amiga Feltrin, Ribeiro criou seu próprio canal no YouTube: o Bigode Literário, que já fechou parceria com quatro editoras e recebe passe livre para eventos de autores.

Apesar de não substituírem a leitura, o professor Dutra vê valor nos vídeos. "Melhor canal de literatura do que canal de besteira, não é?"

Dicas de professores para leitura eficiente das obras

De cabo a rabo
Nunca pule a introdução. É importante para entender o contexto em que o livro foi escrito e seu autor.

Um só sentido
Busque quais são as características em comum entre as obras. Isso pode ajudar a prever algumas questões das provas.

Sim, leia
As resenhas podem ajudar a entender a obra, mas, para encarar o vestibular, nada substitui a leitura crítica de todos os livros.

Onde Criticar

É uma "biblioteca virtual" dos livros que você já leu. Os usuários escrevem resenhas e resumos.

Onde Comprar

Um dos mais famosos sebos da web, por lá você encontra todos os livros deste ano. Alguns deles por apenas R$ 5.

É outra opção de site com venda on-line. Inclui livros raros e vende também CDs e DVDs.

Onde Assistir

Outros 'booktubers' que resenharam as obras:

Confira e conheça os livros solicitados nos vestibulares

Prepare-se e adiante-se na leitura dos livros obrigatórios.
Abaixo, conheça e veja a lista dos livros exigida pelas Universidades de São Paulo.


Você poderá interessar por

Um outro olhar da obra Memórias Póstumas de Brás Cubas

Fonte

DANTAS, Carolina. Assista antes de ler. Folha de São Paulo. São Paulo, p. B13, 04 maio 2015.
Texto disponível em Folha de São Paulo. Acessado em: 02 de out. 2015.

Crédito das fotos: Fabio Teixeira; Beto Barata.

24 de maio de 2015

Na sala de aula, não!

Para o aprendizado, computadores, tablets e celulares atrapalham mais do que ajudam.
Por Dr. Rogério Tuma

O professor associado da Universidade de Nebraska em Lincoln Bernard McCoy entrevistou 777 alunos de seis universidades em cinco estados americanos durante o outono de 2012 e descobriu que o uso de aparelhos digitais, como celulares, computadores e tablets durante a aula é muito mais frequente do que se imagina. Seu uso quase nunca objetiva o aprendizado.

Mais de 80% dos alunos admitem utilizar as engenhocas durante as aulas, o que interfere negativamente no seu aprendizado a ponto de piorar as suas notas, relata o estudo, publicado na edição digital do Journal of Media Education. Pelos questionários respondidos pelos alunos ficou confirmado: apenas 8% deles não usavam os aparelhos durante as aulas, 35% utilizavam de uma a três vezes ao dia, 27% utilizavam de quatro a dez vezes, 16% utilizavam de 11 a 30 vezes e 15% utilizavam os aparelhos durante as aulas do dia mais de 30 vezes.

Em relação ao objetivo do uso, 86% disseram que conversavam por texto durante as aulas, 68% checavam e-mails, 66% visitavam as redes sociais enquanto o professor tentava ensiná-los, 38% simplesmente navegavam na internet e 8% (os mais caras de pau) jogavam algum tipo de game durante as aulas. Um dado para os fabricantes de relógio: entre os alunos, o objeto virou passado. Apenas 67% deles utilizavam o aparelho para checar as horas.

Os alunos acham vantajoso utilizar os equipamentos digitais durante as aulas, pois 70% queriam permanecer conectados, 55% combatiam a monotonia com os tablets, e 49% diziam fazer algo ligado à aula. A maior desvantagem citada por 90% dos alunos é não prestar atenção na aula: 80% perdiam instruções importantes dadas pelo mestre e 32% eram advertidos pelo professor pelo mau comportamento e mais de 50% disseram que foram distraídos pelo uso das engenhocas por algum colega na sala.

Mais de 25% dos alunos referiram perder pontos na nota por causa do uso de aparelhos durante a aula. Apesar de notarem o prejuízo causado, a grande maioria minimiza o problema. Para 95%, o hábito de utilizar os aparelhos digitais na aula não era um problema maior. Mais de 90% deles, porém, são contra alguma regra que proíba celulares e afins nas salas de aula.

O uso desses aparelhos é uma grande ameaça ao modelo de ensino atual. Mais de dois terços dos alunos possuem um equipamento digital. Segundo um estudo da Experian Marketing Services feito este ano, um aluno comum de universidade americana recebe em média 3.853 mensagens de texto por mês. Para o pesquisador, as aulas deveriam ter mais intervalos. Assim, os alunos poderiam checar seus e-mails. E os professores, em vez de impedir telefones em sala de aula, deveriam incentivar os alunos a utilizá-los para checar dados sobre o assunto da aula. Mais do que combater o uso, o professor deveria entender o caráter multitarefa do aluno, de esse ser capaz de aprender enquanto manda um recado de texto para o colega.

Mudanças de paradigmas da educação são frequentes. A interferência das mudanças de comportamento dos alunos no modo de ensinar é fundamental. E o preparo de professores para esses desafios é a chave para o sucesso na formação dos jovens. O Brasil não respeita e muito menos admira os nossos professores e, portanto, não os ajuda. A formação dos professores atualmente é, na maioria dos casos, bancada pelos mesmos. E poucos têm experiência com novas tecnologias. O atraso no desenvolvimento dessas habilidades só aumenta o abismo entre a educação moderna e a atualmente oferecida no País.

Fonte

CARTA NA ESCOLA. São Paulo: Editora Confiança, n. 82, dezembro, 2013.

Texto disponível em Carta Capital.

17 de março de 2015

Filosofar como os antigos

Por Luiz Felipe Pondé

O que é mais importante na filosofia? Infelizmente, muita gente acha que é decorar nomes, conceitos e períodos históricos. Não é.

Quando estava no primeiro ano de medicina, perguntei a um professor como um paciente terminal se via diante do nada. Ele me disse o seguinte: "O senhor está na aula errada, deveria estar na aula de filosofia".

Levei cinco anos para seguir seu conselho. Não por falta de coragem (desculpa mais fácil de dar, afinal trocar uma carreira de medicina pela de filosofia é uma loucura), porque sou passional no que faço e isso facilmente se assemelha à coragem. Gostava do conhecimento médico mesmo.

A filosofia para mim sempre foi mais da ordem da experiência do que da teoria. Absurdo, a priori, num mundo dominado pela Senhora Capes e sua alma de capitalismo chinês.

Devido a essa preferência pela experiência em detrimento da teoria, depois de fazer a experiência cética, nunca mais consegui viver sem respirá-la.

Estudar filosofia é mais parecido com a atividade de ruminar um texto (como faziam os monges no início do cristianismo e ainda o fazem), lendo-o atentamente e várias vezes, procurando nele "seu próprio texto", do que simplesmente defender um doutorado. A burocracia mata tudo, inclusive a filosofia.

Sim, sei que minhas palavras parecem românticas. Não o são se você conhecer filosofia antiga e a obra de Pierre Hadot. Na realidade, a "filosofia como arte de viver" (título de um dos seus livros) é coisa para quem tem repertório sólido, e não apenas conhecimento burocrático sobre autores, épocas e conceitos (apesar de que tudo isso é importante também).

"Antes formar os espíritos do que informar." Essa é a definição que Arnold I. Davidson dá para hipótese de Hadot sobre a filosofia antiga: a filosofia antiga era um exercício espiritual.

Davidson é professor de filosofia da religião e literatura comparada da Universidade de Chicago e parceiro de Pierre Hadot em suas pesquisas sobre filosofia antiga.


Ele faz o prefácio da edição dos "Exercícios Espirituais", de Pierre Hadot, recém-publicado pela É Realizações, essa editora que tem feito um trabalho belíssimo no Brasil, trazendo para nós títulos que são verdadeiras pérolas do pensamento clássico.

Segundo Hadot, muitas das contradições que encontramos em obras estoicas e epicuristas são fruto do fato de que seus autores não estavam preocupados em defender hipóteses meramente "claras e distintas" acerca de problemas teóricos, mas pensavam a filosofia como modo de enfrentamento da existência, por isso ele toma "existencial" como sinônimo de "espiritual".

Devo viver segundo as demandas da matéria ou existirão outras? Devo viver segundo os critérios do mundo ou cuidar para que ele não me iluda e, consequentemente, me frustre demasiadamente? Como responder a questões do tipo "Devo viver segundo o que penso e sinto ou devo levar em conta o que o grupo considera essencial"?

O silêncio é para os sábios. Falar demais na vida é sempre um sinal de vaidade e fraqueza? Como enfrentar o fato de que o mundo é o lugar da mentira? Vale a pena se dedicar aos vínculos afetivos ou não?

"Espiritual" aqui não significa apenas religioso mas intelectual, sensorial, imaginativo, afetivo e moral. É o termo que Hadot usa para reunir todas essas dimensões da condição humana.

Nesse sentido, a ética para ele não é apenas uma discussão sobre normas (ética exterior), mas também o combate interno (ética interior) entre o bem e o mal, a experiência dessa luta no silêncio da alma. O vai e vem entre a incerteza da decisão e a certeza da dúvida.

Filosofia como exercício espiritual é uma pedagogia para a sutileza. E a sutileza é um milagre num mundo em que a grosseria reina. Ar puro no mundo do ruído que é o nosso.

É nesse contexto que penso o ato de ensinar filosofia. E por isso, espero ajudar meus alunos a exercitarem seus espíritos e, assim, encontrarem "seu próprio texto".

E, com eles, rever o meu, para assim, quem sabe, talvez, "transfigurar o cotidiano", que, segundo Hadot, é a função suprema da filosofia.

Não deixe de conhecer

O filósofo, escritor e ensaísta brasileiro Luiz Felipe Pondé

Fonte 

PONDÉ, Luiz Felipe. Filosofar como os antigos. Folha de São Paulo. São Paulo, p. E8, 16 mar. 2015.

Crédito da imagem: Ricardo Cammarota.